O Que se Pode Aprender Com os Pequenos
Carlos Cardoso Aveline
Uma
expressão de dor, um pequeno gemido e uma dúzia de adultos ao redor entra em
pânico. Um sorriso, uma risada, uma palavra nova dita desajeitadamente, e os
que estão por perto são transportados a um estado de alegria, riem encantados,
esquecem problemas e preocupações. Um adulto até brinca e fala como criança,
quando se dirige a ela, pelo puro prazer de mergulhar no estado primordial de
unidade com a vida.
Uma criança de um a dois anos de idade confia em
todos. Seu amor é universal. Ela sorri para qualquer um e faz amizade em um
instante. Não reconhece rixas ou preconceitos e ignora disputas políticas. Não vê separação entre pessoas nem percebe a
si mesma como um ser independente. Amiga natural dos animais domésticos, ela
inspira devoção nos cachorros e desperta a tolerância dos gatos.
É por esses e outros motivos que as crianças pequenas
têm uma aura de divindade em torno de si. Elas não construíram uma couraça de
proteção psicológica. Vivem a harmonia
espiritual, e por isso não conhecem os perigos da vida.
A bem-aventurança só ocorre a aqueles que nunca
sentiram o peso de uma existência isolada -
ou aqueles que aprenderam a esquecer de si mesmos. As crianças pequenas
ainda não tiveram tempo para sentir solidão e por isso têm algo da felicidade
dos sábios.
Na memória inconsciente da humanidade, a criança
simboliza o estado de pureza original. Ao mesmo tempo, ser criança é perigoso:
implica uma inocência, um não-saber, uma inadequação para lidar com as coisas
do mundo e uma necessidade de ser protegido. O adulto sábio não deixa de ter a
sensibilidade e a capacidade de aprender de uma criança. Mas ele defende esse
centro infantil com a sabedoria de um velho e com a vigilância de um guerreiro.
A criança é a consciência crística. Para a filosofia
esotérica, o Novo Testamento pode ser lido como uma grande parábola. A figura
de Jesus Cristo simboliza a alma espiritual, Buddhi, presente em cada ser humano. O Deus-Pai que está nos céus é
Atma, o princípio supremo do qual
Jesus - a alma imortal - é um veículo e um instrumento.
A primeira imagem que temos de Jesus é a do menino
recém-nascido na manjedoura, com a pobreza e o despojamento exigidos dos
verdadeiros Iniciados. Mas essa criança divina é perseguida pela lógica do
mundo egoísta, simbolizada por Herodes, que busca destruir a inteligência
espiritual. Esse é o processo de provação do discípulo e do Iniciado, que deve
enfrentar não só incompreensões e boicotes da parte de outras pessoas,
incapazes de entendê-lo, mas também é perseguido por seus próprios hábitos do
passado e por seu carma acumulado. O caminho que vai até a ressurreição final
da alma é longo, estreito, cheio de espinhos e armadilhas.
Na filosofia oriental, o Iniciado - que vive em seu
coração a unidade de todas as coisas - é considerado “aquele que nasceu pela
segunda vez”. E Jesus Cristo ensina:
“Aquele que não receber o Reino dos Céus como uma
criança não entrará nele” (Lucas, 18: 17). E ainda: “Deixem as crianças e não as impeçam de vir
até mim, pois delas é o Reino dos Céus” (Mateus, 19:13).
A força espiritual das crianças e a magia do amor que
elas derramam em torno de si não são frutos do acaso. São efeitos práticos da
lei da evolução e da reencarnação. A filosofia esotérica ensina que na primeira
grande etapa do processo pós-morte a alma passa uma temporada em kama-loka (local dos desejos) e ali há
uma purificação. Depois, no segundo estágio, chamado de devachan ou local dos deuses
em sânscrito, a alma vive uma exaltação espiritual e uma longa bem-aventurança.
Esse estágio é tão duradouro, cronologicamente, que se atribui a ele “uma
eternidade”. Daí a ideia ocidental de
que o Paraíso é eterno: o cristianismo bebeu na fonte das religiões mais
antigas.
Quando a alma imortal termina seu descanso, deseja ter
novas experiências no mundo. Então ela decide levar sua evolução a novas
etapas, resgata a “vontade de viver” e provoca o processo que leva a outra
encarnação. Ela traz para o mundo, durante os primeiros anos da nova vida,
grande parte daquela bem-aventurança, bondade e pureza que caracterizam o devachan [1].
Uma criança que encanta a alma das pessoas com seu
sorriso estimula nos adultos a capacidade de amar e de compreender. Recém-chegada
do Reino dos Céus, ela traz consigo o perfume sagrado da etapa celestial que há
entre uma encarnação e outra. Ela faz
acordar a criança imortal dentro de cada um. O sorriso infantil que se abre
como um sol cura instantaneamente as feridas da alma.
Uma criança não é só um símbolo da inteligência
espiritual e da compaixão universal. Ela é de fato uma consciência sagrada. Sua
alma ainda não se materializou. Seu corpo é um tênue ponto de apoio na terra. A
pesada mão do mundo não teve tempo de descer sobre ela, prendendo-a aos cinco
sentidos e a dezenas de ansiedades e obrigações pessoais.
Há também uma semelhança entre as duas extremidades do
ciclo humano. É uma tradição do povo japonês que, ao completar 60 anos, se
comemore com uma festa a volta à infância.
A velhice é a idade da sabedoria, mas também é a etapa da vida em que
podemos voltar a ser puros como as crianças e viver - como elas - momento a momento.
Na outra ponta do ciclo, cada jovem grávida deve ser
vista com respeito e admiração, porque ao olhar para ela vemos uma fotografia
do processo cósmico pelo qual a vida se reproduz. A criança que cresce dentro
do corpo da sua mãe é como um pequeno templo dentro de um templo maior. A gravidez de cada mulher é um fato divino,
porque realiza a manifestação periódica, no mundo, daquilo que é eterno e transcendente.
O nascimento, por sua vez, é a passagem por um portal
sagrado. O ser humano recém-nascido traz consigo o mistério do Advento, e
também tem em sua bagagem a memória acumulada das experiências anteriores da
humanidade. Assim, o corpo humano deve ser respeitado e apreciado. Ele é o
santuário habitado por uma alma imortal, como ensinou São Paulo:
“Vocês não sabem que são templos de Deus, e que o
Espírito de Deus (Atma) habita em vocês? Se alguém destrói o templo de Deus,
então Deus (a Lei do Carma e do Eterno Equilíbrio) o destruirá. Pois o templo
de Deus é santo, e esse templo são vocês”. (1Coríntios, 3: 16-17)
É verdade que os “mercadores
do templo” devem ser expulsos. Eles
são a mentira, a ilusão e outras formas de ignorância. Mas isso só é possível
com paz no coração. É a verdade serena - e não a raiva inquietante - que expulsa o erro. Falando da lâmpada
sagrada no coração humano, o pensador brasileiro Ruy Barbosa afirmou:
“O coração não é tão frívolo, tão exterior, tão carnal
quanto se pensa. Há, nele, mais que um assombro fisiológico: há um prodígio
moral. É o órgão da fé, o órgão da esperança, o órgão do ideal. Vê, por isso,
com os olhos da alma, o que não podem ver os olhos do corpo. Vê ao longe, vê em
ausência, vê no invisível, e até no infinito ele vê. (...) Entre vocês, moços,
ainda brilha em toda a sua rutilância o clarão da lâmpada sagrada, ainda arde
em toda a sua energia o centro de calor em que se aquece a essência da alma. O
coração de vocês, pois, ainda estará incontaminado, e que Deus assim o
preserve”. [2]
É certo que as crianças são o futuro de uma sociedade.
Mas elas também revelam algo sobre o presente. Pode-se saber o estado de alma
de um povo observando apenas o modo como ele trata suas crianças.
No norte, no nordeste e outras regiões do Brasil,
milhões de crianças têm de trabalhar para viver. Nas ruas das grandes capitais,
cidadãos de dez anos de idade vendem balas ou lavam carros para sobreviver. Em
certos casos essas crianças são arrastadas para o crime. É verdade que, segundo
as estatísticas, a situação da criança brasileira melhorou um pouco nas últimas
décadas. Mesmo assim continua péssima. Para resgatar o futuro e a dignidade do
povo brasileiro, uma das primeiras coisas a fazer é cuidar bem das novas
gerações.
Crianças e jovens ensinam e estimulam três coisas
essenciais ao coração dos mais velhos: a sinceridade, a simplicidade e a
autenticidade. As artimanhas da astúcia devem ser abandonadas para que possamos
ser íntegros como uma criança e inofensivos como uma pomba. É claro que, ao mesmo tempo, é recomendável
ter a sabedoria e a prudência de uma serpente.
Se ficássemos fixados em alguma idade, fosse ela qual
fosse, iríamos contra a lei da natureza, que é o eterno movimento, a
transmutação e a evolução. E seríamos infelizes. Por isso cada um de nós é
simultaneamente criança e adulto, guerreiro e pajé, lutador e sábio. Cada um
tem consigo o presente, o passado e o futuro. A criança leva em si a semente de
um velho, e o velho tem em seu peito um coração de criança. Na natureza nada se
cria, nada se perde, tudo se recicla, eternamente.
NOTAS:
[1] Há uma descrição precisa dos estágios
pós-morte e pré-nascimento, feita por Raja Iogues dos Himalaias e até há pouco
inédita em português, na obra “Cartas dos Mahatmas Para A.P. Sinnett”, Ed.
Teosófica, Brasília, dois volumes: Cartas 68, 70A, 70B, 70C, 71, 104 e 119, entre outras.
[2] “Oração Aos Moços”, Ruy Barbosa, Ediouro,
RJ, pp. 39-40.
000