15 de janeiro de 2014

Além da Dor e do Prazer

Como Trilhar o Caminho da
Felicidade Segundo a Filosofia Estóica

Carlos Cardoso Aveline

A filosofia ensina a transcender o pequeno mundo pessoal



A primeira nobre verdade do budismo é correta:

A vida causa sofrimento”.

Porém, quanta dor é necessária para viver?

Esta questão está sempre em aberto, porque depende da atitude de cada um a todo momento. A arte de viver ensina a transmutar a aflição em sabedoria, e torna possível uma satisfação duradoura em relação a si mesmo, aos outros e à vida.

O cidadão comum perde muita energia fugindo da dor ou buscando anestesia psicológica. Rádio, televisão, e outras formas de “diversão” ajudam, literalmente, a “passar o tempo”, como se o tempo não tivesse valor e pudesse ser jogado fora. Formas inúteis de lazer entorpecem o cidadão e desviam sua mente das questões centrais da vida. Mas o velho dilema entre dor e fuga da dor deve ser olhado com calma.  

Quando a dor é exagerada e vista como algo central, podemos querer fugir dela por meio de algum dogma ou algum salvador, ou fechar os olhos através do refúgio na comodidade fácil, o que causa mais sofrimento. Podemos desenvolver uma espiritualidade mecânica e supersticiosa, ou cair no outro extremo, optando por um materialismo igualmente destituído de bom senso.

O falso abismo entre prazer e sofrimento faz com que o caminho da sabedoria seja pouco compreendido e que seja encarado de modo contraditório. De um lado, a espiritualidade é descrita como o melhor modo de alcançar a felicidade, a bem-aventurança e o bem-estar permanente. De outro lado, ela é descrita como o caminho da cruz, do sofrimento e do sacrifício. Onde está a verdade?

O primeiro efeito prático da caminhada espiritual é que começamos a pensar mais profundamente sobre a vida. O nosso discernimento aumenta, e vemos o resultado desagradável dos prazeres promovidos pela sociedade de consumo. Eis alguns exemplos do que percebemos:

* O alcoolismo gera insensibilidade e violência.

* Comer demasiado, ou inadequadamente, é prejudicial.  

* A alimentação carnívora não faz bem à saúde.

* Cigarro causa diversas doenças.

* Uma vida emocional impensada tem diversas e graves contraindicações. 

* Os sentimentos de ódio e inveja ameaçam o bem-estar físico, emocional e mental.

* A prática da mentira, seja ela dita para os outros ou para nós próprios (e mesmo que seja bondosa e “espiritual”), acaba gerando um mundo psicológico confuso, sobre o qual nada se pode construir de duradouro.

A ética e a moderação surgem como porto seguro em nossa vida quando temos a coragem necessária para observar como funciona a lei da causa e do efeito. Mas o que acontece se, ao contrário, alguém vê as recomendações éticas como mandamentos dogmáticos e as obedece de modo mecânico e supersticioso, como se fosse membro de um rebanho de ovelhas e não tivesse direito a decisões próprias? Neste caso a prática da virtude é construída sobre a areia movediça da obediência cega, e pode quebrar-se. Na verdade, o dogma religioso e o ceticismo materialista são as duas caras da moeda falsa da ignorância espiritual.

Quando o indivíduo pensa que o caminho espiritual é feito apenas de perdas dolorosas e não traz consigo uma libertação interior e uma bênção, a experiência espiritual pode terminar em hipocrisia - ou pode levar ao extremo oposto do materialismo igualmente cego.  

De um certo ponto de vista, aceitar a dor e até mergulhar nela abre as portas para a felicidade. Grandes místicos de diversas religiões seguiram por esse caminho. O segredo está em que, quando aceitamos a dor, ela desaparece. A maior parte do sofrimento humano é, na verdade, psicológico, e surge da nossa luta infantil contra a realidade. A fantasia da resistência aos fatos acaba criando o desespero. Estamos condenados a ser impiedosamente perseguidos por tudo aquilo de que queremos fugir. A dor psicológica é como aquele cachorro que nos persegue latindo com aparência de furioso, mas que, quando paramos e o encaramos, desvia o olhar, disfarça, e afasta-se abanando discretamente o rabo.

Khalil Gibran escreveu que “a dor é o rompimento do invólucro que encerra nossa compreensão”. Para ele, do mesmo modo “que a semente da fruta deve quebrar-se para que seu coração apareça ante o sol”, nós também devemos conhecer a dor. O sofrimento pode ser uma experiência iniciática. Ele amplia nossa visão da vida e nos empurra para a transcendência, fazendo-nos alcançar um novo nível de consciência e de conhecimento. Neste nível, recuperamos a paz e o equilíbrio sobre bases mais sólidas. Diz Gibran:

“Se o seu coração pudesse viver sempre no deslumbramento do milagre cotidiano, sua dor não lhe pareceria menos maravilhosa que sua alegria, e você aceitaria as estações do seu coração como sempre aceitou as estações que passam sobre seus campos. E você contemplaria serenamente os invernos da sua aflição. Grande parte do seu sofrimento é escolhida por você mesmo: é a poção amarga com a qual o médico que está em você cura o seu eu-doente. Confie, portanto, no médico, e beba seu remédio em silêncio e tranquilidade, pois sua mão, embora pesada e dura, é guiada pela suave mão do Invisível, e a taça que ele lhe oferece, embora queime seus lábios, foi confeccionada com lágrimas sagradas.” [1]

A posição de Gibran é sábia. Porém, um exagero na aceitação do sofrimento pode levar por compensação a um salto para o extremo oposto, onde se busca o prazer fugindo infantilmente de toda dor. Por isso é recomendável manter o equilíbrio e a moderação. O pensador grego Epicuro, que viveu entre os anos 341 e 270 antes da era cristã, propôs um caminho de autorresponsabilidade.  

Epicuro construiu sua filosofia em torno da ideia do “prazer verdadeiro”, que surge com a renúncia à preguiça e a outros vícios. Para ele, é no ponto intermediário entre a dor e a indulgência que se abre o caminho sólido da sabedoria, fonte da felicidade interior. Epicuro afirmou, em sua Carta a Menequeu:

“Quando dizemos que o prazer é a meta, não nos referimos aos prazeres dos depravados e dos bêbados, como imaginam aqueles que desconhecem nosso pensamento, e sim à ausência de dor na alma. Não são as bebedeiras e as festas ininterruptas que constituem a fonte de uma vida feliz, mas aquela sóbria reflexão que examina a fundo as causas de toda escolha e rejeita as falsas opiniões, responsáveis pelas perturbações que se apoderam da alma. A prudência é o princípio de tudo isso e o bem supremo.”

Durante a maior parte dos últimos 2000 anos, a mente humana oscilou contraditoriamente entre duas atitudes. De um lado, um ideal grandioso de fraternidade e de contato com a consciência divina. De outro lado, uma prática materialista que nada tinha a ver com a teoria. Céu e terra pareciam desconectados.

Estamos acordando agora, finalmente, desse longo sonho em que a consciência crística ou búdica do ser humano permanecia “crucificada” pela vida material, enquanto a figura de Jesus impotente, torturado, agonizando na cruz, ocupava o lugar de maior destaque dos templos.  

Resgatar algumas ideias fundamentais da filosofia clássica ocidental é parte significativa desse renascimento. O desafio e o destino dos novos tempos é unir outra vez céu e terra, ou sonho e realidade. Os sábios da Grécia antiga não viam separação entre deuses e homens, ou ideal e prática. Reexaminando do mesmo modo a relação entre prazer e dor, ou felicidade e sofrimento, obtemos chaves úteis para compreender e acelerar a transformação que está ocorrendo na mente humana, enquanto se prepara a sociedade global e solidária do terceiro milênio.

O prazer e a felicidade, para Epicuro, são simplesmente a ausência de dor no corpo e a falta de perturbação na alma. Nesse ponto, a filosofia grega coincide rigorosamente com a Raja Ioga dos Himalaias. Para os iogues, o nirvana - o êxtase final - é apenas a ausência total de desejo. Todo o resto é ilusório e causa sofrimento.  

Epicuro distinguia três tipos de prazer:

1- Os prazeres naturais e necessários - por exemplo, comer quando se tem fome, beber quando se tem sede, dormir quando se tem sono.

2- Os prazeres naturais mas não necessários - comer muito bem, beber bebidas sofisticadas e “saborosas”, vestir-se com muita elegância, etc.

3- Os prazeres não naturais e não necessários - ligados à opinião dos outros, ou seja, fama, riqueza material, poder, honras e assim por diante. [2]

Cada um de nós, na sua condição de cidadão livre, deve definir o que são no seu caso concreto os prazeres adequados. A filosofia de Epicuro não é um dogma, mas um guia para a ação autônoma do ser humano. Ela dá elementos para que o indivíduo assuma plena responsabilidade sobre sua própria vida, e alcance mais felicidade interior.

Os prazeres do primeiro grupo são os que devem ser satisfeitos sempre. Sua função e seu limite natural é “eliminar a dor”, e não devem ir além desse ponto. O exagero os faria cair no segundo grupo, e neste caso o apego ao prazer passa a gerar sofrimento desnecessário através da perda de bom senso e da moderação. Deve-se, pois, reduzir as satisfações do segundo grupo.

Já os prazeres do terceiro grupo sempre acabam causando sofrimento através de ansiedade, incerteza, vaidade, ambição pessoal e outros sentimentos que são inseparáveis do medo.

Epicuro propõe uma postura madura diante da dor e do prazer, com base na ideia de evitar tanto o apego automático como a rejeição cega. O mesmo ensinamento é encontrado na filosofia estoica. Lúcio Sêneca propôs no império romano um contentamento incondicional que é item prioritário não só para os epicuristas, mas também para os estudantes de ioga, na Índia milenar. Para Sêneca, o supremo prazer “vem do alto”, porque o sábio “vive contente com seus bens, sem cobiçar coisa alguma fora de si”. O prazer autêntico surge do contato direto com nossa própria alma imortal.

Epicteto, um ex-escravo romano que fundou uma escola de filosofia estoica, manteve a tradição socrática e não colocou nada no papel. Mas um discípulo anotou seus discursos e sua sabedoria está hoje à nossa disposição. É com grande simplicidade que Epicteto explica a proposta da moderação como caminho para a real felicidade.

A seguir, sete ideias centrais do seu “Manual Para Viver”:

UM

Saiba o que você pode controlar, e o que não pode. A felicidade e a liberdade começam com uma clara compreensão de um princípio; algumas coisas estão dentro do nosso controle, e outras não estão. Podemos controlar nossas opiniões, aspirações, desejos e ações, por exemplo. Tentar controlar outras pessoas ou circunstâncias externas é sempre fonte de preocupação, frustração e infelicidade. Devemos cumprir nosso dever e deixar que a realidade seja como é.

DOIS

Ninguém pode ferir você. Mesmo que alguém agrida você com palavras e o insulte, é sempre sua opção sentir-se insultado ou não pelo que está acontecendo. Se alguém o irrita, na verdade é apenas a sua própria reação que irrita você. Portanto, quando alguém estiver aparentemente provocando sua raiva, lembre-se de que é a sua própria visão do incidente que o está enraivecendo - e não se deixe levar por reações automáticas.

TRÊS

O progresso espiritual se faz confrontando a morte e a calamidade. Em vez de desviar o olhar dos acontecimentos dolorosos da vida, olhe para eles de frente e examine-os com frequência. Enfrentando as realidades da morte, das perdas e da decepção, você fica livre das ilusões e falsas esperanças e pode usar melhor sua energia vital.

QUATRO

Dedique sua vida a um ideal digno. Tenha metas pessoais espiritualmente superiores, independentemente do que as outras pessoas pensarem. Permaneça fiel às suas melhores aspirações, seja o que for que estiver ocorrendo ao seu redor.

CINCO

Saiba que tudo ocorre para o bem. Conforme você pensa, você é - ou se tornará. Evite interpretar os acontecimentos supersticiosamente, dando-lhes significados que não têm. Não chegue a conclusões apressadas. Parta do ponto de vista de que tudo o que lhe ocorre lhe traz algum bem, alguma lição e alguma experiência. Se decidir que terá sorte, a terá. Pense de modo calmo e vitorioso.

SEIS

Crie o seu próprio mérito. Nunca dependa da admiração dos outros. Isso o enfraquece extremamente. O mérito pessoal nunca pode aumentar por alguma fonte externa. Seja maior do que críticas ou aplausos, mas leve em conta a opinião dos outros para identificar onde é necessário corrigir erros e como pode melhorar ainda mais.

SETE

Focalize seu principal dever. Há um tempo para descanso e diversão, mas você nunca deve deixá-los prejudicar o seu verdadeiro propósito na vida. Deve escolher formas de lazer e outras atividades secundárias que sejam compatíveis com a missão central que escolheu para realizar. [3]

O caminho dos estoicos adota a mesma ética da filosofia esotérica de Helena P. Blavatsky. As atividades cujas metas são apenas pessoais e de curto prazo devem ser diminuídas porque, em geral, são ineficazes e provocam sofrimentos adicionais. A verdadeira felicidade está em cumprir nosso dever assim nas vitórias como nas derrotas, tanto nos momentos agradáveis como nos desagradáveis, preservando em todos os casos a paz interior que habita o silêncio.

Como Gibran escreveu, “nossa alegria é nossa tristeza mascarada. Quanto mais profundamente a tristeza cavar suas garras em nosso ser, tanto mais alegria poderemos conter”. E ele acrescentou:

“Alguns dentre vós dizeis: ‘A alegria é maior que a tristeza’, e outros dizem: ‘Não, a tristeza é maior.’  Eu, porém, vos digo que elas são inseparáveis. Vêm sempre juntas; e quando uma está sentada à vossa mesa, lembrai-vos de que a outra dorme em vossa cama. Em verdade, estais suspensos como os pratos de uma balança entre vossa tristeza e vossa alegria. É somente quando estais vazios que estais em equilíbrio.” [4]  

Evitar a euforia e o desânimo, trilhando o caminho da paz interior, é próprio de seres maduros. A verdadeira sabedoria não se separa da arte de viver com simplicidade. Apontando na mesma direção, o antigo sábio chinês Lao-tzu, o fundador do taoísmo, afirma na obra “Wen-tzu”:

“O caminho do céu é reverter depois de atingir um clímax e diminuir ao atingir a plenitude; isso é ilustrado pelo sol e pela lua. Por isso os sábios se diminuem diariamente, esvaziam os seus estados de espírito e não ousam ficar satisfeitos consigo mesmos; eles progridem diariamente fazendo concessões, assim sua virtude não se desvanece. É assim que funciona o caminho do céu.” [5]

NOTAS:

[1] “O Profeta”, de Gibran Khalil Gibran, Ed. Acigi, RJ, trad. de Mansour Challita, pp. 49-50.  

[2] Da seção “Antologia”, incluída na obra “Epicuro - As Luzes da Ética”, de João Quartim de Moraes, ed. Moderna, SP, p. 93.

[3] “The Art of Living”, Epictetus, a new interpretation by Sharon Lebell, Harper SanFrancisco, Harper-Collins, 1995, EUA, 114 pp., ver pp. 3, 27, 28, 29, 25, 12 e 14, respectivamente.

[4] “O Profeta”, obra citada, pp. 27 e 28.

[5] “Wen-tzu - A Compreensão dos Mistérios”, Ensinamentos de Lao-tzu. Tradução do chinês, Thomas Cleary; tradução do inglês, Carlos Cardoso Aveline; Ed. Teosófica, Brasília, 2002, 198 pp., ver p. 60.

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Uma versão inicial do texto acima foi publicada pela revista “Planeta”, de São Paulo, em junho de 2000.

Sobre o tema de como enfrentar o sofrimento, veja também o artigo “As Horas Difíceis”, de Carlos Cardoso Aveline, que pode ser localizado em nossos websites associados.

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