3 de novembro de 2014

Minha Filosofia

Agora Não Procuro Convencer
Ninguém Por Meio de Palavras

Celso de Magalhães


Há quem diga que a humanidade do futuro deixará o raciocínio,
como forma inferior, e passará a adquirir conhecimentos apenas pela intuição


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O texto a seguir reproduz a primeira
parte do capítulo final da obra “Filosofia
da Vida”, de Celso de Magalhães, Rio de
Janeiro, 1948, Ed. Jornal do Commercio,
175 pp. O capítulo é intitulado “Minha Filosofia”.

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O mal do homem está em queixar-se demais. Claro que nem tudo no mundo são flores; mas em toda coisa ruim há, pelo menos, um lado bom; vista por esse ângulo, a coisa deixa de ser ruim.

A queixa constante revela fraqueza e debilita o organismo. O esforço, a atitude mental, durante as queixas, provocam o esgotamento nervoso e estragam a saúde.

A vida não deve ser tomada muito a sério; encarar a vida com muita gravidade é prejudicial: males sempre existiram e continuarão a existir. Por mais que as coisas melhorem, nós e os das gerações mais próximas não as veremos muito diferentes do que são agora. A seriedade, a gravidade no encará-las, de nada adianta. O povo já diz que choros não pagam dívidas.

As modificações sociais se processam como as modificações biológicas: o homem, na maior parte das vezes, quase nem se apercebe de como elas ocorreram. Não é sua vontade que muda a estrutura moral do mundo, que reorganiza desta ou daquela forma os grupos, as multidões, as massas. Tudo se passa conforme as forças que atuam na evolução do mundo, entre as quais se conta a atividade do próprio homem, mas onde existem também muitas outras que ele não conhece nem dirige.

A felicidade consiste em procurar obter o máximo de  proveito das coisas que nos cercam; se essas coisas forem boas, melhor; se forem más, aproveitemo-las no que oferecem de útil. Lembremo-nos do inglês da anedota: perdeu o dinheiro mas ganhou a lição.

A vida deve ser comparada a uma disputa esportiva como, por exemplo, uma partida de futebol. Quando um time entra em campo, seu objetivo é vencer; mas ele sabe que também pode ser derrotado. Se ganhar, exulta, expande-se, mas não subestima o adversário porque sabe que, amanhã, o derrotado de hoje poderá ser o vencedor. Se perder, não se queda a lastimar: procura descobrir o motivo da derrota, para corrigi-lo, na certeza de que, da próxima vez, poderá ganhar. 

A vida é um esporte; nela são igualmente possíveis as vitórias e as derrotas. A vitória de um dia não deve justificar a imprevidência que pode levar à derrota de amanhã; a derrota de hoje não deve provocar o desânimo, pois não impede a vitória do dia seguinte.

O principal fator para a conquista da felicidade é o cultivo da alegria esportiva. Mas só pode ser alegre quem sabe perder; logo, não pode ser feliz quem se desanime com as derrotas. Qualquer que seja a situação da vida, é possível conservar a alegria esportiva, desde que se substitua o infortúnio pela convicção da melhoria futura.

Não convém ter inveja de ninguém. Se um indivíduo possui mais dinheiro que outro, e já se julga por isso um príncipe, não é razão para que o outro se considere diminuído, humilhado, infeliz. Procure descobrir no homem de dinheiro algum traço de inferioridade; forçosamente haverá de tê-lo: veja como anda, como fala, qual a sua cultura, seu estado de saúde, sua compleição física, etc.  Numa coisa qualquer haverá de ser inferior ao pobre e, descoberta essa inferioridade, já não terá importância seu ar principesco, porque decairá na admiração do pobre.

Não há ninguém que seja superior aos outros em todas as coisas ou qualidades. Cada um de nós terá pelo menos uma superioridade sobre os que se julgam superiores. Explore essa superioridade e não se sentirá mais inferior ou desprezível. A inveja desaparecerá, voltando a paz de espírito.

Porque um é chefe e outro subordinado; porque um é oficial e outro soldado; porque um é branco e outro preto; porque um é doutor e outro analfabeto…, isso não importa: o subordinado, o soldado, o preto [1], o analfabeto, hão de ter coisas que o chefe, o oficial, o branco, o doutor, gostariam de possuir. Não há diferenças absolutas, totais; elas são sempre relativas, dependendo do ponto de observação.

Muito interessante será aprender a olhar para baixo, para ver quanta gente há de menos importância social, econômica, física, ou seja de que outra ordem for; quanta gente há mais infeliz.

O ser absolutamente miserável não existe; o pensamento mal dirigido é que o faz sentir-se como tal.

Quando se faz o bem a outrem, deve-se fazê-lo desinteressadamente, por instinto de solidariedade social. Não se devem buscar agradecimentos, esperar gratidão, seja de quem for. Se, por acaso, vierem, convém recebê-los, como se recebe um prêmio de loteria: pura sorte. Exigi-los, porém, é provocar, quase sempre, dolorosa decepção. É preciso não esquecer que quem protege humilha e, por isso, desgosta.

Não se deve fazer o bem indistintamente; quem não faz por si não deve ser auxiliado pelo próximo. A ajuda deve caber apenas ao que se esforça para normalizar sua situação pessoal. Há muita gente que não merece, socialmente falando, o auxílio que recebe; deixá-lo só com suas tragédias, ou lhe fará o bem de o regenerar, bem condicionando-o, ou fará bem à sociedade, liquidando-o de vez. Ninguém lucra em conservar no mundo seres imprestáveis: a vida é luta constante, e quem não possui forças para lutar, deixe a arena e saia do mundo. [2]

Sou amigo de todas as religiões. Nunca procuro desviar um indivíduo desta para aquela religião, porque estou convencido de que todas são igualmente úteis à sociedade.

Quando deparo com um sectário de qualquer religião, interessa-me verificar se ele age de acordo com os mandamentos da religião que abraçou; se não o fizer, mostro-lhe a incoerência em que vive. Nos preceitos morais, todas as religiões civilizadas se equivalem. Convém considerar, antes de pertencer a uma religião, se os mandamentos dela podem ser facilmente obedecidos. É preferível ficar do lado de fora do que levar uma vida de hipocrisia. A dissimulação constrange, perturba os nervos, faz mal à saúde.

Gostaria de encontrar uma religião que não falasse em dores, sofrimentos, pecados. Não creio que a noção de Deus seja incompatível com a alegria de viver. Creio mesmo que a satisfação da vida decorre, por imperativo natural, da certeza de que existe um Deus de bondade, de amor e de sabedoria [3]. Por que não se tenta uma religião assim?

Já gostei muito de discutir; mas foi noutro tempo. Agora não procuro convencer ninguém por meio de palavras. Se o assunto for de natureza científica, poderá haver acordo entre os homens; quando se tratar de matéria experimental, é certo que o haja. Em assunto de livre opinião, subjetivo, porém, discutir é inútil: cada qual conserva seu ponto de vista e o palavrório se eterniza, com o consequente acompanhamento de gestos e de atitudes que só servem para dividir e escandalizar a assistência. Em casos destes convém calar e permitir ao interlocutor que guarde sua ideia.

Nunca se exaspere. Qualquer que seja a situação, o uso de palavras ásperas, de nomes feios, de gestos grosseiros é ridículo.

Não costumo negar aquilo que não compreendo e não explico. O fato de muitas coisas escaparem ao meu entendimento não significa que elas não sejam possíveis. Prudência em aceitar como verdade o que se afirma sem provas é necessária; mas a repulsa à afirmativa de outrem só porque não se conhece a explicação dos fatos é estulto. Há muita coisa no mundo que o homem ainda não descobriu, mas cuja influência há de sofrer.

Não é apenas pelo raciocínio e pelos sentidos que o homem adquire conhecimentos. Há provas inúmeras de que muita coisa a humanidade aprendeu por meios ainda hoje ignorados. Chama-se a isso conhecer por intuição. A própria ciência está cheia de fatos que corroboram essa afirmativa: a simultaneidade de descobertas, as ideias geniais que surgem no momento crítico das experiências, o chamado dom profissional...

As mulheres são férteis em intuições admiráveis; os homens sabem disso, principalmente se já foram amados por alguma. Há quem diga que a humanidade do futuro deixará o raciocínio, como forma inferior, e passará a adquirir conhecimentos apenas pela intuição.


NOTAS:

[1] “Preto”. O autor se refere ao indivíduo de pele negra como alguém cuja situação social é inferior. De fato, o racismo era um sério problema no Brasil nos anos 1940. Do ponto de vista teosófico, qualquer povo perseguido ou desprezado - como os povos indígenas, os negros e os judeus - é moralmente superior aos ignorantes que os desprezam. A filosofia esotérica original ensina que todos os seres humanos são iguais perante a lei do carma e ninguém é superior a ninguém; mas os opressores e causadores de injustiça ficam, moralmente, em uma situação inferior aos oprimidos. (Carlos Cardoso Aveline)

[2] Neste ponto, à p. 155, omitimos um trecho do capítulo que tem menos interesse teosófico.  O próximo parágrafo corresponde ao parágrafo inferior da p. 159. Nossa transcrição avança então até o primeiro parágrafo da p. 162. (CCA)

[3] Escrevendo pioneiramente na década de 1940, Celso de Magalhães deixa claro que não acredita no deus católico. De fato, segundo a filosofia esotérica não há deuses monoteístas exceto na imaginação dos ingênuos e dos sacerdotes. Existe a lei universal do equilíbrio. O universo inteiro, com todos os seus níveis de consciência, é divino. A ignorância e a dor presentes na natureza e na humanidade são apenas a energia divina, adormecida.  Cabe despertar. A palavra “Deus” produz mais confusão e controvérsia do que paz e esclarecimento. (CCA)

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Capa do livro “Filosofia da Vida”, de 1948, de onde foi reproduzido o texto acima.  Celso de Magalhães, o autor, tinha 50 anos quando a obra foi publicada.  Ele nasceu em 1898 e viveu até 1964.

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Sobre o mistério do despertar individual para a sabedoria do universo, leia a edição luso-brasileira de “Luz no Caminho”, de M. C.


Com tradução, prólogo e notas de Carlos Cardoso Aveline, a obra tem sete capítulos, 85 páginas, e foi publicada em 2014 por “The Aquarian Theosophist”.

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